“O agradável nada a fazer” (lucundum… nihil agere) é uma expressão latina empregada por Plínio e Sêneca e que está na origem do dito “dolce far niente“, o doce não fazer nada empregado pelos italianos. Originalmente, a expressão não possuía conotação negativa. Era um convite à contemplação da natureza e à valorização dessa atitude em face da vida ativa, ocupada pelo fazer cotidiano e pelo trabalho.
Vida ativa e vida contemplativa constituem uma oposição desde Grécia clássica e não são poucos os textos que glorificam a contemplação, a suspensão do juízo e da ação como atitudes filosoficamente interessantes e como princípios éticos legítimos.
Mas que destino está reservado a essa suspensão do agir no mundo contemporâneo? Época de horror ao vazio, tempo em que a produção colonizou todas as esferas de nosso ser. Período paradoxal em que se contabiliza criteriosamente a relação entre o prazer e trabalho; em que o precioso tempo precisa ser bem “investido” e a falta de ocupação é índice da presença do mal.
“Não passa de um bando de desocupados”. Com essa expressão supostamente destitui-se a legitimidade de qualquer ação coletiva e desvaloriza-se qualquer engajamento individual. O desocupado é suspeito até que se prove o contrário.
“O desagradável não fazer nada” é a sina de nossos tempos.
Uma de suas faces mostra-se no que podemos chamar de “síndrome de domingo à noite”: momento de despedida do ócio, de cálculo dos afazeres e dívidas ocupacionais.
Note-se o contraste com o afã da sexta-feira, em que a perspectiva do “nada a fazer”, o prazer virtual do tempo livre, é talvez mais importante que o usufruto de fato das horas vagas, gastas, aliás, em filas e congestionamentos próprios aos aparatos de diversão regulamentada.
Esse precioso capital de inutilidade obedece a estranhos desígnios:
- Quando se tem o tempo livre é preciso desfazer-se dele urgentemente, na realização de algum projeto suspenso;
- Na sua falta é preciso sonhar com ele, planejá-lo, administrá-lo em sua virtualidade;
- Quando se é inesperadamente forçado a tê-lo, como no desemprego, na velhice ou na doença, é o pior dos males que nos toca.
Certa vez, ouvi de um professor o seguinte argumento:
Todos sabemos que desemprego é uma perspectiva inevitável: estrutural nas contingências de nossa economia, logo, a única coisa que provavelmente sobrará nos próximos anos é o tempo.
O grande problema será, então, o que fazer com esse tempo.
Se tempo é dinheiro, que dinheiro é esse que desaparece quando não circula?
A estrutura temporal do cotidiano é circular, semelhante à dos mitos: inicio, apogeu e fim, que por sua vez se liga a um novo início.
Um ciclo como o das estações do ano e das antigas cosmologias. Isso vale para o dia, para a semana, para o mês.
A percepção dessa circularidade se choca com a estrutura não circular da existência: nascimento e morte, irreversíveis. Passado, presente e futuro em sucessão linear e não cíclica.
Quando o futuro se sobrepõe ao passado e eterniza o presente, eis aí o cotidiano. Sem riscos, sem compromisso, sem hesitação, o cotidiano é indissociável da ideia de repetição.
Isso não parece depender do tipo de atividade exercida —mais agitada ou tranquila, por exemplo—, basta que a sobreposição temporal se realize para que o sujeito se apague.
De modo inverso, é na ruptura da circularidade do tempo que o sujeito se transforma ao instituir um antes e um depois que não podem mais ser trocados ou sobrepostos.
Isso significa que a proporção trabalho/prazer ou a estimativa útil/inútil se rompe nesse modo do tempo extracotidiano.
São momentos individualizantes; fazem história, gestam projetos, realizam circunstâncias presentes mas apagadas pela repetição.
O modo temporal mais apropriado para entender isso que se opõe ao cotidiano foi isolado por Freud em relação ao fantasiar e coextensivamente ao brincar.
Segundo Freud, a fantasia depende de um movimento tríplice: uma impressão atual é forte o suficiente para despertar recordações de experiências passadas e, a partir disso, criar uma situação referida ao futuro que se afigura como realização desse desejo.
Assim, o “agradável nada a fazer” pode ser considerado condição para o deixar-se impressionar
Aqueles que não sobrevivem ao “não ter nada para fazer” são também os que não brincam, não fantasiam, nem tiram férias.
Um dos artigos mais importantes de Freud chama-se justamente “Psicopatologia da Vida Cotidiana”.
Nele, uma série de acontecimentos, aparentemente sem sentido, triviais mesmo, como os pequenos esquecimentos, escolhas irrefletidas do dia a dia e troca de palavras durante conversas casuais, são analisados como formações do inconsciente. Formações cuja principal característica é que não as levamos a sério, esquecidas na falação cotidiana.
Outra característica desses acontecimentos é que eles não são antecipáveis, isto é, não se pode saber quando acontecerá um vacilo da fala ou um engano. Também seu sentido não pode ser calculado de antemão.
Conclusão: a psicopatologia da vida cotidiana desorganiza o cotidiano ao romper seu ciclo temporal constitutivo e apresentar um modo diferente de inserção no tempo.
Psicopatologia das férias
Supostamente, o momento culminante em que o cotidiano é rompido são as férias. Ápice do consumo reprimido, decidir o que fazer nas férias tornou-se tarefa para especialistas: agências de turismo, roteiros, preparação da preparação para a surpresa. Surpresa administrada, gerenciada, tal como pânico em filme de terror.
A psicopatologia das férias certamente deve reservar um capítulo à estranha inquietude que assombra a terceira semana de ócio, uma espécie de “síndrome de domingo” ampliada, misturada de saudades do cotidiano, desespero diante do que fazer e iminência ansiosa da retomada.
É preciso reter o tempo: fotos, impressões, preciosas lembranças, ter o que apresentar ao final da gloriosa jornada.
É preciso olhar para si mesmo com a sensação de dever cumprido, com a imagem acabada de uma boa aplicação de poupança de tempo-prazer
Mas, se tudo se pré-realiza antes do acontecimento e se pós-avalia depois do acontecido, o que haveria afinal para acontecer?
Se todos os prazeres estão em seus lugares e todos os lugares estão em seus prazeres, qual a diferença essencial disso para o próprio cotidiano?
Lembro-me de certa vez contar uma viagem, para amigos.
À medida que repetia a história para diferentes grupos, percebi que, de todo acontecido, um episódio costumava despertar sistematicamente maior atenção.
- Estávamos num enorme complexo de acesso rodoviário tentando achar a saída para o destino pretendido (e planejado), o mapa aberto meio sem jeito, estava meio escuro e as placas eram em alemão. De repente, o mapa voa pela janela do carro… E pode-se imaginar o resto.
O interesse reside no fato de que estar assim perdido não era parte dos planos mas transformou-se em lembrança transmissível, ao contrário de diversas belezas naturais e culturais sobre as quais se poderia dizer apenas coisas como “gostei”, “não gostei”, “ótimo”, “impressionante” etc.
Não que fossem experiências qualitativamente inferiores, ao contrário, são comumente experiências com forte apelo estético, cujo principal atributo é a dificuldade de transmissão e compartilhamento.
A elaboração coletiva de acontecimentos disruptivos, como os que localizamos nas férias, é um dos aspectos mais comprometidos pelo cálculo de satisfações próprio do cotidiano.
Ao hiperplanejar as férias, nota-se uma corrupção da sua diferença essencial com o cotidiano, o que explica a relativa decepção que acompanha muitos finais de férias.
Filmes como “O Turista Acidental”, “Nosso Querido Bob”, “Férias Frustradas” e “Esqueceram de Mim” exploram o lado cômico dessa antecipação do acontecer e da dificuldade subjetiva expressa pela sintomatologia das férias.
O trabalho invade as férias, os preparativos que se transformam nas próprias férias, a viagem sem transformação subjetiva, o esquecimento do mais importante. As férias transformam-se, assim, na própria eternização do cotidiano.